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Cosmovisões e Espiritualidade no mandato pela Agroecologia.

Faz quase duas semanas que aconteceu a mesa de diálogos intitulada Ecologia e Cosmovisões- espiritualidade, política e ambiente. No auditório da câmara dos vereadores de Florianópolis, diante de um público engajado e curioso falaram Madrinha Beth, representando o Santo Daime, Jagannatha Dama em sua visão Vaishanava, Iyá Barbara, pelo povo afrocentrado, Kerexu Yxapyry como voz MBya Guarani e Cíntia Moura, em nome do movimento da agroecologia. Divido aqui algumas anotações que fiz durante e após as falas, neste encontro que me tocou profundamente, justo no período em que lia o livro No tempo das Catástrofes, da filósofa da ecologia Isabelle Stengers. Em seu texto Stengers ecoa em muitos pontos o que desenharam as falas daquela tarde - propondo modos de viver neste mundo em que a catástrofe ecológica é conhecida e, de fato incontornável. Haverá um novo mundo, Stengers escreve, e temos que compreender como recompor modos sociais e subjetividades coletivas neste contexto catastrófico, de forma a não acatar nem a inércia apocalíptica nem tampouco na esperança idílica de que algo além salvará nossa existência.


A fala de Kerexu, em sua clareza impecável, tratou da noção de desenvolvimento, ao lembrar que o termo carrega o desengajamento entre corporealidade e ação (des-envolver). Enquanto a ouvia, reparei que sobre a mesa, na parede a única arte do ambiente era uma imagem de um Cristo, pendurado pelas mãos imobilizadas, ensanguentado. Ele tem seu corpo dilacerado, desfaz-se enquanto ascende em idealismos comportamentais: no ícone cristão está representada a não ação, espiritualidade sem corpo, sem organismo, sem ambiente. Para o povo Guarani, por outro lado, cada gesto carrega em si um compromisso com a memória, com a história, atados ao presente vivido. Este entrelaçamento entre um modo de fazer cotidiano e a ação espiritual é observado como o fundamento mais valioso da espiritualidade por um outro filósofo, A.N. Whitehead. Segundo ele há algo muito grave que ocorre quando contrapomos às doutrinas espirituais o mundo concreto. E nesta observação perspicaz, temos um indicativo da importância em trazer esta mesa de debates para o plano de convivialidades da assembleia legislativa de nosso município, há algo precioso em indagar sobre a importância das cosmovisões espirituais no contexto das instituições do Estado.

Em seu livro Religião no Fazer (Religion in the Making, sem tradução para o português), Whitehead, que era, em sua época, considerado um filósofo da ciência e da lógica e não um teólogo, defende, ao refletir sobre doutrina, corpo e metafísica, que não passaria de ilusão erguer nossas crenças e decisões sobre investigações historicistas, que desprezam o sentido da espiritualidade, sendo que conectivo entre a religião, a ação no mundo e o processo de criação se dá em envolvimento, práticas: envolver-se.

"Temos apenas o presente e ao menos que este presente esteja erguido em princípios gerais que incluem toda a comunidade existente, não podemos nos mover para além de passos medíocres de imediatividade", ele escreve. Esta inclusão só pode operar em ações, em práticas que cabem em um corpo conectado à comunidade, práticas estas que podem parecer não ter sentido concreto, sob um olhar estritamente materialista, mas que trazem luz ao pertencimento e entrosamento com o meio ambiente, aspectos fundamentais à dignidade existencial. Whitehead evidencia que a religião só tem como propósito a busca por claridade, por aprofundamento de compreensão e quando deixa esta busca de lado afunda-se em formas obscuras de prática. Os tempos de fé, quando o sentido de espiritualidade depreende-se da ação e acomoda-se em uma abstração de sentires, marcam as eras obscuras de racionalismo, segundo seus argumentos. Assim, não precisamos ter fé, mas sim ações que considerem o meio ambiente e nossa sociedade como algo para além de mero racionalismo concreto.

No rituais citados por Kerexu relacionados às práticas de parteria, manejo da placenta e do cordão umbilical do recém nascido, vemos um mundo real, um mundo que é pura experiência, atividade física, mas que não se encerra nem em uma memória abstrata nem em pragmáticas funcionalistas de um cotidiano imediato. O que eles produzem então? Como reconhecer e atribuir valor à tais gestos? Há em cada ato relacionado à sacralidade uma comunidade de entidades diversas que contribuem para valores que são partilhados, mas que também mantém as entidades autônomas, em solidariedade, valiosas em si mesmas. Perceba que sob esta lente as entidades não são apenas sujeitos humanos, "agentes", e sim toda a ecologia das relações, emprestando termos de Whitehead para este relato.

Iya Bárbara falou de ancestralidade, de vitalidade, de pertencimento, do quanto podemos transformar cada objeto, cada coisa em algo sagrado. Assim, no fazer espiritual colocamos em jogo a habilidade de gestar consciência por empatia. Estas habilidades deveriam ser reconhecidos também como nossos commodities- é isso o que percebemos que o mundo europeu, inclinadamente niilista, percebe como bem que lhes falta. Esta é uma habilidade que preserva: estar no mundo criativamente. Não trato aqui da criatividade enquanto estripulias compositivas, mas como um modo de estar em que o passado temporal é tomado como novidade é a ação de reconhecer o mundo no instante nascido de cada encontro. Na ação quasi-metafísica de se colocar sob a perspectiva de outras entidades ( cadeira, flor, nuvem, criança…) podemos co-criar o mundo sob perspectivas múltiplas, mas este não é um exercício mental, especulativo, e sim algo que se dá em atos, muitos destes desprezados por não terem sua concretude funcional explícita em nossa sociedade de ações neutras e diretivas.

Das narrativas das experiências com o Santo Daime que ouvimos, destaco a valorização em observar as coisas a partir de modos indeterminados, onde tudo pode ser direcionado a uma liberdade específica. Esta ação espiritual compõe um modo de operar com o mundo, com o outro e também de formular a compreensão sobre si mesmo, descentralizando a lógica de nossa própria perspectiva. Enquanto filhos da Terra, imagem trazida pelo teólogo hinduísta Jogannatha Dama, devemos nos afastar de um determinismo que traria novamente a ideia de que o mundo é consistente em si ( e portanto independente de nossas ações) retomando a dimensão dos atos individuais e de gestão no contexto do Tempo das Catástrofes.

Ao longo de todas as exposições fiquei com a pergunta de um dos assessores ecoando: Como condensar todas aquelas narrativas dentro de um mandato, dentro de uma casa legislativa?

Muitos equívocos surgem atualmente no Brasil frutos de uma compreensão barata de que ideologias religiosas podem ou devem estabelecer argumentos que sustentem decisões jurídicas e legislativas. Aparte a obviedade dos problemas implicados em hegemonias de crenças em um país com a diversidade de práticas tal como o Brasil, caímos na armadilha de propor para a religião um uso, um equívoco brutal e recorrente. Em sua melhor forma a prática religiosa é feita de ações, comunitárias, coletivas e não de doutrinas ou controles morais, ela é o resultado de conexões e, consecutivamente a espiritualidade não deve ser confundida com um sistema de verdades generalistas, com efeitos de transformar caráteres (como alardeiam algumas igrejas e também discursos de auto-ajuda atualmente). Whitehead escreve que caráter e a condução de uma vida dependem de convicções íntimas, que não podem ser atenuados a partir de preceitos religiosos externos. A espiritualidade é a arte de alimentar a vida ( esta coisa tão íntima e paradoxalmente repartida), pelos entremeios das doutrinas sociais, gerando emoções coletivas e singulares.

Nos equivocamos ao acreditar que as cosmovisões espirituais sustentam uma experiência coletiva- isto é doutrina, e também o estabelecimento de ações legislativas. "Religião é solitária, portanto se você nunca está solitário você nunca será religioso. Entusiasmo coletivo, memória, instituições, igrejas, rituais, códigos de comportamento, são armadilhas da religião, são formas passageiras. Elas podem ser úteis ou prejudiciais, podem ser ordenadas autoritariamnte ou apenas um expediente temporário. Mas os objetivos da espiritualidade estão muito além disso.", descreve Whitehead. O ponto mais importante para ele é a prática de transcendência, portanto, de atribuir importância à uma experiência que é tão real e tão ínfimamente concreta.

Então, penso que a importância daquelas falas, para responder a pergunta de como condensar tudo isso "em um mandato" está aí também.

Em primeiro lugar ao promover este encontro revelou-se a fantasia de uma suposta neutralidade contida no sujeito neutro, este ente pré-existente que deve ser atendido pelas decisões legislativas. Cada narrativa ali explicitou a violência escondida ao homogeneizar práticas com o termo "cidadão". Somos tão distintos quanto nossas práticas cotidianas e merecemos uma gestão de cidade que reconheça diferentes modos de existir.

Ao ouvir sobre as cosmovisões ali narradas e pequenas descrições de como cada comunidade lida com a compreensão de ecologia, facilmente nos damos conta da reificação do concreto, que obviamente orienta os debates legislativos. Em oposição à importância dos efeitos concretos, mantemos uma razão que seria supra-material ( a Moral, a Economia, a Ciência, a Religião, etc…) mas que de fato não considera a importância real do Gesto, da ação individual e comunitária para acessar estes outros planos de existência, menos imediatos, menos palpáveis, os quais cada uma das narrativas de espiritualidade descreveram, a seu modo. É possível reconhecer tais planos de existência em debates legislativos?

Na diversidade de práticas em que nossa cidade está composta, as vozes daquela tarde clamaram pela existência de modelos de gestão que considerem densidades, temporalidade distintas, e não apenas causas e efeitos imediatos, contabilizados sobre a concretude de um sujeito neutro e dados de desenvolvimento mensuráveis quantitativamente. Se nos rendemos à noção de que há algo que excede a vida humana, independentemente de dogmas, passamos à plena aceitação da Criatividade sobre a qual falei anteriormente, recobrando a importância da ação no mundo.

E aqui retorno à Isabelle Stengers, para fechar minhas elucubrações e tentar compreender porque o citado Direito à Natureza passa por ouvir sobre cosmovisões, influi nas hierarquias de importâncias de gestão de cidade. Num exercício de nomear a Terra como Gaia, ela devolve a esta coisa mais-que-humana um sentido de unidade, a concepção de um planeta vivo e nos convida a deixar de lado a ideia de reparações inclusivas, que, honestamente só estariam ocupadas com respostas econômicas e desviam o foco das travessias que podemos ainda realizar, num planeta tão profundamente ferido por termos optado por des-envolver-nos.

Para Stengers é necessário sobreviver ao pânico pois esta emoção seria um caminho para a barbárie, e considerar amorosamente que não haverá um milagre da ciência para salvar Gaia e que, portanto, nos resta recobrar a arte do cuidado para aprender a viver neste novo mundo, um mundo em que somos soterrados diariamente pela ideia de catástrofe iminente.

"É preciso criar uma vida depois do crescimento econômico, uma vida que explora conexões com novas potências de agir, sentir, imaginar e pensar", ela escreve. Esperamos sempre que nossas contribuições sejam gigantescas demais porque nos acostumamos com essa escala planetária. Mas ela não é real: as coisas grandes são formadas por partículas minúsculas. Cada pequena coisa que conseguimos fazer no sentido desse agir com cuidado e transformar nossas pequenas ações cotidianas tem sua relevância, a autora complementa em seu diagnóstico. Podemos "também continuamente colocar tudo isso em uma caixa de ressonância e falar sobre isso, a partir dos meios e das habilidades que cada um tem. A esperança é que possamos (re)descobrir juntos dimensões da vida que ficaram soterradas nesse conceito torto de progresso: a reconexão com a terra, a existência dos ciclos, a convivência com seres não-humanos, o valor do cuidado, a potência do não agir."

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